(texto para o Jornal Evangélico Luterano)
Na minha infância, meninas treinavam a cada dia para trabalho em casa, e com bonecas, a maternidade. Algumas de nós se revoltavam, e queriam brinquedos nada “mulheris”. Ainda hoje, fala-se que mulheres são criadas para a maternidade e em Dia das Mães, se fala do “dom natural” das várias atribuições que recaem sobre as mães. Mas é treinamento.
É comum dizer que não há dor maior para uma mãe do que a perda de filho. E das 4 crianças que tive, duas morreram e duas celebram a graça da vida, comigo, a cada dia. Demora bastante tempo até que consigamos respirar sem a dor que a morte causa na gente. E como nunca foi inventado um medidor para dor, o melhor é respeitar a dor de outras pessoas, e ver que cada um, cada uma sente a sua dor. Percebo o quanto a salvação em Jesus Cristo entrou na minha vida: Deus se faz gente, é solidário a quem sofre, e enfrentou Ele mesmo o sofrimento para mostrar que há superação, há vida sem dor e sem mágoa na ressurreição. E, se Deus nos acolhe, Ele é forte (fortão!) para carregar nossa raiva, nossas tristezas, nossas dores.
Sou pastora há 23 anos, quando a formação feminina era ainda restrita. Muitas pastoras que iniciaram comigo, ou antes de mim, abriram caminhos nem sempre (re)conhecidos. Também trabalhei por dois anos em um abrigo para crianças e adolescentes geralmente vítimas de violência. Tive a certeza de que cuidados maternos precisavam ser aprendidos e treinados – como fizéramos na infância. E fui experimentando formas diferentes de trabalho.
Lanches, almoços e momentos de lazer são meu trabalho na educação de minha filha e meu filho, fazem parte da minha responsabilidade – e prazer – em ser mãe. Celebrações, conversas e viagens com pessoas da comunidade fazem parte do meu trabalho – e prazer – no pastorado.
Há muito tempo desisti do exercício de dona de casa sem mácula e sem erro. Assumo dificuldades, peço ajuda, demonstro cansaço. A geração de minha mãe experimentou o mercado de trabalho, mas voltou para casa a fim de serem perfeitas “donas de casa”. Minha geração tentou a partilha de tarefas entre mulheres e homens. Mas o cotidiano é mais do que nos ensinam as teorias e vejo muita cobrança e julgamento entre nós, dessa geração. Culpamos pessoas por conta de um sistema de vida, de regras que alienam e absorvem as pessoas num projeto que só contempla reconhecimento, sucesso e glória.
Percebo que há outros formatos de relacionamento surgindo. Dão conta de atividades – e moradias – assumidas em separado para que não haja frustração na convivência. A convivência revela nossos segredos bem guardados, nossos humores e nossos horrores. Muitas religiões e filosofias vão dizer que, por isso, temos que acreditar só em nós mesmos. E vamos definindo lugares e espaços para que a convivência não nos perturbe.
Por isso gosto do jeito luterano de perceber que sozinhas, sozinhos, não somos nada (Lutero disse que éramos um saco de vermes). Qualquer relacionamento é envolto por pecado: ora são palavras, ora são silêncios, ora são gestos, ora são recolhimentos. Todos, todas pecamos. Não merecemos nada, já que tudo o que fazemos é erro e engano. Mas Deus nos santifica e transforma. É esse o poder do Espírito Santo - no Dia do Trabalho, no Dia das Mães.
Vocação ou trabalho?
Das profissões que são vocação nem sempre há o devido pagamento, nem respeito a horários, só dedicação total. Em época de Dia das Mães, exalta-se a vocação exercida na maternidade – inata, gratuita, incansável.
Muito se fala de dignidade se houver emprego. É uma variação do que se lia na entrada dos campos de concentração da Segunda Grande Guerra, na Alemanha: “o trabalho dignifica o homem”. Em época de Dia do Trabalho, exalta-se o profissionalismo que supera stress, cansaço, irritabilidade e traumas constantes.
Dia do Trabalho e Dia das Mães são datas tão próximas e mesmo assim comemoradas em universos separados: o trabalho é uma coisa, vocação (materna, no caso), é outra. Mas são universos da mesma criação de Deus.
Sobre mães recaem cobranças (reunião de pais, na escola, têm, em sua maioria, só mães presentes) e, é bom lembrar que criança mal-educada é quase sempre nominada “filha da mãe”, e quase nunca “filho sem pai”. É, sim, opção de cada pessoa ser mãe ou pai e é opção da sociedade reconhecer e capacitar trabalhadores e trabalhadoras para a tarefa de serem mães e pais.
Segundo Martim Lutero, temos a vocação (de Deus) a respeitar em nossa profissão (trabalho no dia a dia). Deus nos envolve, nos chama e capacita (mães e pais) a colocarmos dons a Seu serviço na Educação, acompanhamento, zelo, orientação, a filhas e filhos e a denunciar o sistema que sempre aperfeiçoa a escravidão.
A maternidade pode usar instrumentos variados: creche, apoio de pessoas próximas, família, escola, atividades diversas. Ainda assim sempre será trabalho. E alegria, se for bem administrada.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário